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sábado, 10 de outubro de 2020

Quando deixamos de exigir o impossível

A burguesia ganhou a luta de classes no século vinte. Precisamos de um balanço histórico e político sério da época contrarrevolucionária em que vivemos e das últimas décadas da esquerda brasileira. Só assim poderemos libertar nossa imaginação política do pragmatismo rasteiro em que ela se encontra aprisionada.


Por Jones Manoel.

Uma cena nunca sairá da minha mente. Na disciplina de História Moderna de meu curso de História na Universidade Federal de Pernambuco, minha professora, Socorro Abreu, disse que na sua época de juventude (ela se referia aos anos 1960) acreditar na revolução não era um sonho, algo “utópico”. Era a época das revoluções. Desde a derrota do nazifascismo, até as revoluções Chinesa, Coreana e Cubana, passando pela vitória do Vietnã na grande Batalha de Dien Bien Phu, com processos de libertação nacional incendiando impérios coloniais seculares pelo mundo. Era um período histórico em que o impossível parecia não existir. Exigir o impossível era possível e realista.

Como esse presente era marcado por revoluções e transformações radicais, havia uma tendência histórica de libertar a imaginação política do pragmatismo rasteiro e da pequena política, mesmo quando a conjuntura nacional era desfavorável. Chamo de imaginação política a capacidade de captar as potencialidades de transformação inscritas na ordem atual e transformar o possível em real por meio da mediação da política revolucionária. É o ato de olhar para o hoje com capacidade de ver um novo futuro como algo crível, passível de conquista – olhar o processo histórico como um ato de força política por excelência.

Quando somos condicionados a pensar a história a partir da mediação da política1 e passamos a enxergar as relações socioeconômicas que nos constituem não como parte da natureza humana abstrata e imutável, mas como produtos da ação humana, das relações de força, da luta política – nessas condições, pensar a criação radical de um mundo novo é algo que surge como possibilidade histórica em vários setores da sociedade2.

Era uma época histórica na qual confinar a política ao calendário eleitoral ou apenas à formulação de políticas públicas era bem mais difícil. Vivíamos, a nível mundial, um conflito de classes acirradíssimo que ameaçava, concretamente, a existência do capitalismo. Em momentos como esses, a ideologia dominante também perde força e as estruturas da sociedade capitalista ficam expostas como feridas que sangram. O pensamento crítico é turbinado e, retroalimentado pela prática, enseja grandes contribuições teóricas.

Uma observação atenta revelará que parte substancial do que consideramos hoje pensamento crítico é produto de agendas de pesquisa, conceitos e teorias surgidos ou enriquecidas ao máximo nos anos 1950, 1960 e 1970 do século passado. Foi um tempo glorioso no qual a palavra “revolução” era parte do vocabulário político de toda uma geração – das selvas do Vietnã passando pelos guetos negros dos Estados Unidos, até as montanhas da China e os bairros operários do Chile,

Fim da história

Tudo isso acabou. Os últimos suspiros revolucionários foram a vitória do Vietnã sobre os Estados Unidos (1975), a Revolução Nicaraguense (1979), a Revolução de Saur no Afeganistão (1978) e a Revolução de Bukina Fasso (1983)3. A partir da segunda metade dos anos 1980, a contrarrevolução neoliberal e neocolonial varreu o mundo. Foi o fim da União Soviética e do “campo socialista”, a derrota dos projetos nacionais-libertadores em África e Ásia (e os que sobreviveram, como a Líbia de Muammar al-Gaddafi, não tinham mais a potência crítica de antes), crise na China, Vietnã, Cuba, Coreia Popular e derrota do terceiro-mundismo.

A vitória do capitalismo foi avassaladora. Ninguém, desde o mais pessimista revolucionário até o mais otimista liberal, esperava uma derrota aparentemente tão fácil da União Soviética4. Em sua história política e filosófica da luta de classes, Domenico Losurdo sintetiza bem o cenário desesperador para a esquerda a partir daquele momento:

“No plano das relações internacionais, não há dúvidas sobre o significado reacionário da virada que ocorreu entre 1989 e 1991. E, exatamente em 1991, ano do colapso da URSS e da primeira Guerra do Golfo, uma prestigiosa revista inglesa (Internacional Affairs) publica no número de julho um artigo de Barry G. Buzan que se concluía anunciando com entusiasmo a boa nova: ‘O Ocidente triunfou tanto no comunismo como no terceiro-mundismo’. A segunda vitória não era menos importante que a primeira “hoje o centro tem uma posição mais dominante e a periferia uma posição mais subordinada desde o início da descolonização”; podia-se considerar felizmente arquivado o capítulo da história das revoluções anticoloniais”

Domenico Losurdo, A luta de classes: uma história política e filosófica (São Paulo, Boitempo, p. 280).

A burguesia ganhou a luta de classes no século vinte. Um dos seus principais espólios nessa guerra foi poder escrever a história desse século e da modernidade burguesa no geral, expropriando as classes trabalhadoras de sua história. Um famoso ditado popular africano afirma que enquanto os leões não tiverem historiadores, a história das caças vai continuar glorificando os caçadores. O impacto político, ideológico, cultural e simbólico da derrota de 1989-1991 até hoje, ao nosso ver, não foi corretamente avaliado.

Quando o assunto é a conjuntura da contrarrevolução neoliberal e neocolonial, é muito comum que seja citado o ideólogo do imperialismo Francis Fukuyama e sua “teoria” do fim da história. Segundo ele, com a vitória sobre a União Soviética – e o terceiro-mundismo –, o mundo teria caminhado para uma convergência universal na qual a democracia liberal e a economia de mercado – ou seja, o capitalismo – reinariam soberanos. Muitos riem do “diagnóstico” e do triunfalismo expresso pelo ideólogo estadunidense. Eu, pelo contrário, acho que Fukuyama acertou. De fato adentramos uma época histórica dominante na qual a imaginação política foi castrada, e o que se chama de esquerda, grosso modo, foi confinada ao papel de gerente “com preocupação social” do capitalismo.

Democracia ou totalitarismo?

Pretendo demonstrar essa tese a partir de quatro pontos fundamentais. O primeiro é a formação do consenso conservador em torno da democracia. A partir do mito de que o grande problema das experiências socialistas do século XX teria sido o autoritarismo, ou o totalitarismo, afirma-se um compromisso abstrato com a democracia e com o socialismo democrático ou o socialismo “com liberdade”5. Todos os espectros políticos são democráticos. Os mais “radicais”, porém, querem ampliar a democracia: democratizar o Estado, a política, a economia, a cultura e por aí vai.

Por décadas a fio o marxismo revolucionário defendeu a necessidade de destruir o Estado burguês e construir uma outra forma de poder político: o Estado proletário ou poder popular. Logo após a experiência da Comuna de Paris, Marx e Engels redigem um novo prefácio ao Manifesto Comunista. Nesse pequeno texto para a edição alemã de 1872, eles destacam que a Comuna provou que “não basta que a classe trabalhadora se apodere da máquina estatal burguesa para fazê-la servir a seus próprios fins”, mas que é preciso quebrar essa máquina e construir um poder político dos trabalhadores.6 Desde então, de maneiras variadíssimas e muito acúmulo teórico e prático, os movimentos revolucionários mundo afora pensaram em formas alternativas de organizar o poder, a política, o Estado e a democracia.

A democracia era claramente adjetivada como burguesa, dos ricos, das grandes corporações. Não se tratava de democratizar essa estrutura política, mas de negá-la completamente. Com a vitória política burguesa do final dos anos 1980, porém, o jogo mudou completamente. O professor Luiz Vicente Vieira sintetizou bem o espírito do tempo na seguinte passagem:

“Trata-se, primeiramente, daquela visão que se encontra pressuposta na maioria das análises sobre o sistema político dominante, a qual considera o modelo em questão – o da democracia parlamentar – como o ápice da evolução da organização política da humanidade  segundo o qual qualquer tentativa de alterações substanciais no modelo representativo parlamentar nos conduziria necessariamente a algum beco sem saída, como algumas formas de autoritarismo, o que pode ser facilmente detectado como suposto de inúmeras análises teóricas do tema, de ampla aceitação na mídia impressa e televisionada”.

Luiz Vicente Vieira, A democracia com pés de barro. O diagnóstico que mina as estruturas do Estado de direito (Recife: Editora UFPE, 2006, p. 15).

Esse consenso conservador em torno da sacralidade ou canonização da democracia, além de esvaziar o horizonte estratégico de construção de um verdadeiro poder popular, apaga total ou parcialmente um dos aspectos centrais da crítica marxista do Estado burguês. Marx, já no século XIX, tinha desenvolvido a crítica das perspectivas de análise do Estado e da política institucionalistas, focadas na formalidade jurídica e na dinâmica sociológica de funcionamento das instituições, como se o Estado pudesse ser entendido como um ente em si mesmo. O criador do materialismo histórico compreende que

“As relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII, compreendia sob o nome de ‘sociedade civil’ [relações de produção]”

Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política (São Paulo, Expressão Popular, 2008 [1859], p. 47)7

Recalque econômico

Combina-se a esse abandono da crítica radical do Estado e da democracia burguesa, (caindo no erro que Althusser tão bem denunciava8) a ausência de um programa econômico realmente transformador das esquerdas. A esquerda hegemônica, guardada toda sua diversidade, simplesmente não tem programa econômico. Quando muito, se limita a propor mais “inclusão social” – isto é, programas sociais e políticas públicas voltados para setores mais fragilizados, mas dentro do mesmo quadro de política econômica, nos marcos do mesmo padrão de acumulação, das mesmas relações de produção. No geral, até os que se dizem socialistas e comunistas se refugiam na teoria keynesiana, cuja proposta mais radical é uma reforma tributária progressiva, que aumenta a taxação de grandes fortunas, lucros e dividendos e o consumo de luxo. O que não significa dizer que essas propostas não tenham importância tática.

Durante boa parte do século XX, o horizonte estratégico dos revolucionários de todo o mundo era o socialismo que se confundia com a planificação da economia. Numa economia planificada os principais meios de produção (fábricas, fazendas, bancos, redes de grandes lojas etc.) seriam públicos e socializados, e o processo de produção e distribuição de bens e serviços seria regulado de acordo com um plano econômico desenhado com vistas a atender plenamente às necessidades humanas e não ao lucro. As experiências de planificação econômica, com todos os seus problemas e contradições – nenhum revolucionário afirmou que não haveria problemas a serem resolvidos e defeitos a serem corrigidos – foram absolutamente bem-sucedidas. As duas maiores experiências de desenvolvimento socioeconômico da história da humanidade – a soviética e a chinesa, com modelos e formas de institucionalidade bem diferentes entre si – foram (e no caso da China, ainda é) baseados na planificação econômica9.

Sem falar nos êxitos civilizatórios que, em maior ou menor medida, todas as experiências de transição socialista alcançaram – seja em termos de redução ou fim da pobreza, miséria, fome, desigualdade, desemprego; aumento ou universalização da cobertura de saneamento básico, do tratamento de água e esgoto, do acesso a saúde, educação, cultura, lazer, da promoção de segurança; do desenvolvimento científico e técnico, da reforma agrária; além do aumento dos principais índices de qualidade de vida, da industrialização, da modernização de equipamentos públicos etc. Com a vitória da burguesia no final do século XX, tudo isso foi apagado e, como num passe de mágica, planificação da economia passou a ser tratada, sem mais, como sinônimo de ineficiência, atraso, escassez, fome etc.

Com o processo de reforma e abertura da China, a coisa foi ainda mais longe. Se antes os ideólogos da burguesia podiam até dizer que a planificação econômica era ruim embora o planejamento estatal de tipo keynesiano tivesse seus méritos, agora passava-se a retirar qualquer mérito até mesmo do planejamento econômico de tipo capitalista. Toda forma de ação do Estado na economia é uma tragédia, tema proibido, sinônimo de stalinismo, totalitarismo, desejo de genocídio e coisas afins.

A planificação econômica também foi reduzida a estatização geral, e a nacionalização ou estatização dos meios de produção condenadas, sem que qualquer substituto tenha sido posto em seu lugar. Até hoje, nos momentos raros nos quais o tema é abordado, tenta-se resolver o problema afirmando que o planejamento econômico é defensável, desde que seja “democrático”, ou que socialização e nacionalização não são sinônimos, reivindicando, de forma sempre muito abstrata, uma democracia operária pura, de base e com autogestão. Essa “alternativa”, contudo, nunca conseguiu oferecer uma opção forte à ideologia dominante de idolatria do “livre mercado” capitalista e à política econômica neoliberal.

Um exemplo perfeito da condenação primária de qualquer forma de planificação ou planejamento econômico foi a recente disputa política na Inglaterra entre os partidos Trabalhista e Conservador. Jeremy Corbyn representa uma virada à esquerda no trabalhismo britânico e defende, no seu programa econômico, uma série de nacionalizações de empresas e setores estratégicos da economia para desmantelar o legado neoliberal de Margaret Thatcher e dos governos seguintes. Frente a essa “radicalidade”, qual foi a resposta da burguesia inglesa e seus representantes políticos?

“Boris Johnson lançou sua campanha no jornal conservador Daily Telegraph, comparando Jeremy Corbyn a Joseph Stálin: ‘a tragédia do moderno Partido Trabalhista sob Jeremy Corbyn é que eles detestam o lucro visceralmente… eles apontam seus dedos para indivíduos com um prazer e uma vingança nunca vistos desde os gulags de Stálin’.”

Tariq Ali, “O trabalhismo radical irá transformar a Inglaterra”Jacobin Brasil.

A responsabilidade da esquerda

Essa recusa de apresentar um programa econômico radical e debater realmente temas fundamentais produziu um par de fenômenos intimamente ligados. O primeiro é a ascensão de formulações teóricas sobre igualdade a partir não de uma base material igualitária, mas formulações que transitam apenas no âmbito jurídico-político, reflexões éticas ou teorias da comunicação. O sucesso de autores como Jürgen Habermas e Hannah Arendt e suas éticas sem base material, especialmente a partir dos anos 1980, é um dos maiores sintomas disso: imaginam uma mudança no mundo sem tocar na sua base econômica.10

A fenômeno correlato é o surgimento daquilo que se convencionou chamar de uma “esquerda responsável”, “não populista” – isto é, uma esquerda que mantém o equilíbrio fiscal, respeita os contratos e a propriedade privada dos meios de produção e faz uma governança não radical. Nesse caso, por esquerda responsável, entenda aquela zelosa por manter intocados todos os fundamentos da ordem burguesa e fazer uma gestão com, no máximo, algum nível de “preocupação social”. O maior exemplo disso na história recente do nosso país foi Lula da Silva, que depois de eleito, colocou o funcionário do Bank Boston, Henrique Meirelles, para dirigir o Banco Central Brasileiro e garantiu ao então presidente estadunidense George W. Bush, ainda em 2002, antes mesmo de assumir o mandato, que seu governo respeitaria todos os contratos11.

Mais ou menos política social, mais ou menos serviços públicos, privatizações mais radicais ou mais brandas, mais ou menos políticas de “inclusão de minorias” e assim por diante. É basicamente esse tipo de escolha em jogo nas eleições quando disputam uma direita clássica, estilo PSDB, e uma “esquerda responsável”, como o PT (ou democratas e republicanos nos EUA, trabalhistas e conservadores na Inglaterra etc.).

Com a saída de cena do debate sobre poder popular e planificação econômica, a perspectiva de reformas estruturais também ficou órfã. Durante boa parte do século XX, o grande confronto no movimento operário era entre reformistas e revolucionários. Os primeiros, ainda que sem propor superar o capitalismo, defendiam reformas reais e políticas com substância de transformação. Um exemplo clássico do reformismo para fazer frente aos comunistas foi o sistema de Serviço Nacional de Saúde, da Inglaterra, o NHS (National Health Service).

Esse é um dos grandes paradoxos da virada neoliberal. Depois da derrota do movimento comunista, os trabalhistas, os social democratas e afins achavam que seriam a única alternativa de política à esquerda. A realidade, todavia, mostrou esses movimentos esvaziando-se de qualquer perspectiva reformista com algum grau de profundidade, transformando-se, na maioria dos casos, em gestores neoliberais do sistema12.

O pesquisador Maurilio Lima Botelho, colaborador aqui do Blog da Boitempo, resume bem esse processo ao escrever sobre o abandono das perspectivas de transformação estrutural no âmbito da política urbana. Diz ele:

“Toda reviravolta no trato da ‘questão urbana’ é parte do ‘giro culturalista’ ocorrido na filosofia e na teoria social nas últimas décadas: os projetos de reforma urbana em grande escala, remoção, reordenamento viário e territorial, seja planejado por um Estado socialista ou fascista, seja realizado por governos democráticos, todos são tratados como soluções traumáticas e ‘radicais’ para a questão urbana e, por isso, descartados.

A proliferação de conceitos como ‘capital social’, ‘capital cultural’, ‘microcrédito’, e ‘autoempreendimento’ veio comprovar na teoria social a colonização da reflexão crítica pelas necessidades imediatas da administração social da miséria. O resultado teórico desse tipo de reflexão é a legitimação das condições sociais dadas – a assunção e a afirmação do positivo, isto é, do que está dado e que, como dado, deve ser melhorado, e não radicalmente criticado ou superado. O limite disso, em nome de um pretenso respeito ao ato individual dos sujeitos que conseguem resolver seus problemas sem depender da assistência estatal, é a transformação da precariedade em modelo de ‘iniciativa empresarial individual’.”

Maurilio Lima Botelho, “Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres”, em: Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira (orgs.) Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social (Boitempo, 2013, p. 183-184).

Essa exclusão de “soluções radicais”, seja como política revolucionária, seja reformista, reverberou em todos os campos. Por anos, como forma de tentar enfrentar o movimento operário, a burguesia e seus intelectuais também apresentavam soluções, digamos, estruturais, para os problemas sociais: propunham o fim da pobreza, da miséria, da desigualdade, da fome. Ainda que suas soluções fossem falsas – geralmente visando reproduzir os interesses da burguesia apresentando-os como se fossem a vontade de todo povo – ao menos no plano do discurso, falava-se abertamente que podíamos acabar com as chagas sociais, como a pobreza. Com a virada neoliberal e a derrota da URSS, tudo passou a resumir-se a políticas públicas focalizadas sem caráter universal, tirando de cena a perspectiva de reformas – para não falar, é claro, de revolução.

Um dos maiores sintomas disso foi o chamado “ciclo progressista” na América Latina. A maioria desses governos não realizou qualquer reforma significativa, contentando-se com a formulação ou ampliação de políticas sociais e públicas existentes. Sem pautar sequer reformas, o que se conhece como esquerda se rebaixa ao papel de mero gestor do sistema, com alguma preocupação social de verniz cristão – verniz esse com menos radicalidade do que Dom Helder Câmara, que dizia: “quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista”.

A dimensão militar

Por último, sem perspectiva de poder popular, revolução, planificação da economia e até grandes reformas, torna-se supérfluo, para não dizer incômodo, pensar a dimensão político-militar da luta política. Aconteceu uma ruptura teórica, organizativa e política de longo prazo na forma das organizações políticas revolucionárias quanto à questão militar. Até mais ou menos 1970, com variedade de temporalidade a depender do país, os partidos que se reivindicavam revolucionários tinham uma grande preocupação com a questão militar. Isso porque entendiam o básico, isto é, que a classe dominante nunca entregaria seu poder sem luta e que, nos momentos de acirramento da luta de classes, a dimensão militar da luta política assume o primeiro plano.

Ao abordar como se analisam as relações de força em política, Antonio Gramsci aponta três elementos como centrais: a) as estruturas econômicas objetivas em todos os seus determinantes; b) níveis de organização, consciência política, consciência de classe, programa político etc.; c) “a relação das forças militares, imediatamente decisiva em cada oportunidade concreta” (Gramsci, cit., p. 43). Partidos políticos, como o Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), do Chile, e o Partido Comunista Brasileiro (PCB), tinham não apenas seções militares, como, no caso do MIR, um serviço secreto reconhecido por suas qualidades13.

Mais do que isso. Além dessa dimensão fundamental da luta revolucionária ter sido relegada, efetuou-se uma grande ruptura na formação teórica dos dirigentes políticos. Stálin, Trótski, Rosa Luxemburgo, Luiz Carlos Prestes, Lênin, Palmiro Togliatti, Antonio Gramsci, José Carlos Mariátegui, Che Guevara, Thomas Sankara e tantos outros líderes, guardadas todas as suas diferenças, tinham ao menos uma semelhança. Todos entendiam de teoria militar e sabiam pensar a guerra como continuidade da política. Ser um dirigente revolucionário, nas décadas passadas, significava entender da ciência das armas.

Essa ruptura teórica foi adornada com ares democráticos: ignorar a dimensão político-militar da estratégia revolucionária significaria um compromisso com a democracia, agora, um valor universal, para não cair mais nos erros do autoritarismo ou totalitarismo. Carlos Nelson Coutinho, nos anos 1980, assimila um partido com preocupações político-militares ao “golpismo” e diz:

“Parece-me fundamental, contudo, que não sejam partidos golpistas, militarizados, construídos em função da ideia de uma revolução explosiva e violenta, e que tenham uma estrutura interna adequada a essa visão anacrônica. Tem de ser, ao contrário, partidos democráticos, de massa, pois essa é a única forma de contribuir para a construção da hegemonia numa sociedade complexa e “ocidental” como a brasileira de hoje”

Carlos Nelson Coutinho, “Mesa redonda: a estratégia da revolução brasileira”, em: Perry Anderson, As antinomias de Gramsci (Joruês, 1986, p. 135).

Perceba as equações políticas que emergem: preocupação militar equivale a “golpismo”; sem preocupação militar equivale a “democrático”. Esse tipo de formulação se reveste de um ar de superioridade moral e ética, mas segue preso a um pacifismo abstrato e a uma recusa a priori e idealista da violência revolucionária. O historiador Euclides Vasconcelos, em um escrito paradigmático, resumiu bem a situação no Brasil:

“No caso dos marxistas brasileiros, excetuando-se casos pontuais, a questão militar tem sido preterida sabe-se lá sob qual justificativa. A negativa em tratar de temas relacionados à violência, poder, estratégia e uso da força em nada nos faz moralmente superiores àqueles que, servindo à ordem, manuseiam muito bem os fuzis da história. Antes, se a questão moral for o parâmetro, saibamos que ‘aos justos convictos a necessidade estratégica é também uma imposição moral’. Ou, para ficarmos em Marx, cabe lembrar a primeira parte de um aviso bastante pertinente: ‘as armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser deposta pela força material’.”

Euclides Vasconcelos, “Os marxistas brasileiros e a ciência militar: apontamentos de nosso atraso no estudo da crítica das armas”, Revista Ópera, 1 jun. 2019.

Em suma, sem a perspectiva de construir outra forma política para além da democracia burguesa, banindo do debate o fim da propriedade privada dos meios de produção (e, como consequência, a discussão sobre planificação econômica), tirando de cena o debate sobre reformas estruturais e a dimensão político-militar da luta de classes, temos uma esquerda domesticada, não perigosa e no limite funcional à ordem. Uma esquerda que garante um sono tranquilo para a burguesia. Os que comem também dormem. Numa situação dessas, não é necessário ter medo dos famintos14.

A conclusão que se impõe é simples. Precisamos de um balanço histórico e político sério da época contrarrevolucionária em que vivemos e das últimas décadas da esquerda brasileira. O problema não está no reino da pequena política: não está no “hegemonismo do PT”, no egocentrismo de Lula, na querela sobre não se ter apoiado Ciro Gomes ou qualquer ninharia do tipo. O problema é bem mais profundo e precisa ser encarado com toda seriedade e crítica necessária. Passou da hora de irmos às raízes do problema. Fazer esse balanço político sério e sistemático é parte da luta pela Revolução Brasileira.

NOTAS

1 Como diriam Marx e Engels, “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes” (Manifesto Comunista, São Paulo, Boitempo, 2010, p. 40).
2 “A inovação fundamental introduzida pela filosofia da práxis [o marxismo] na ciência da política e da história é a demonstração de que não existe uma “natureza humana” abstrata, fixa e imutável […], mas que a natureza humana é o conjunto das relações historicamente determinadas, ou seja, um fato histórico verificável, dentro de certos limites, com os métodos da filologia e da crítica. Portanto, a ciência política deve ser concebida em seu conteúdo concreto (e também em sua formulação lógica) como um organismo em desenvolvimento.” Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, vol. 3: Maquiavel – Notas sobre o Estado e a política (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2017, p. 56-57).
3 A propósito, Thomas Sankara foi o último grande revolucionário produzido pelo ciclo histórico do século XX aberto com a Revolução de Outubro de 1917. Sobre a obra de Thomas Sankara, conferir Revolução africana: uma antologia do pensamento marxista (São Paulo, Autonomia Literária, 2019, p. 297-397).
4 O melhor livro sobre o fim da União Soviética é O socialismo traído: por trás do colapso da União Soviética, de Roger Keeran e Thomas Kenny (Lisboa, Avente!, 2008).
5 Para uma crítica desse diagnóstico, com ênfase para os casos da União Soviética e China Popular, geralmente tratados como os maiores exemplos de totalitarismo, ver o livro Fuga na história? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje, de Domenico Losurdo (Rio de Janeiro, Editora Revan, 2004).
6 Karl Marx e Friedrich Engels, “Prefácio à edição alemã de 1872”, em Manifesto Comunista, cit. p. 72. No trecho citado, os próprios autores remetem o leitor ao recém-escrito panfleto de Marx sobre a Comuna, A guerra civil na França, onde essa ideia aparece mais desenvolvida.
7 “O Estado encontra-se assim, visceralmente comprometido com o processo de acumulação. O aparelho político estatal passa a assumir, então, uma dupla tarefa. Tanto a função econômica, visando à valorização do capital, ou seja, a supervisão do processo de acumulação, bem como aquela função social, como a da integração da força de trabalho no equilíbrio do sistema político econômico”. Luiz Vicente Vieira, A democracia com pés de barro: o diagnóstico que mina as estruturas do Estado de direito (Recife: Editora UFPE, 2006, p. 63).
8 “Na verdade, e peço que ponderem bem estas palavras, ‘destruir’ o Estado burguês, para substitui-lo pelo Estado da classe operária e de seus aliados, não é juntar o adjetivo ‘democrático’ a cada aparelho de Estado existente, é muito diferente de uma operação formal e potencialmente reformista, é revolucionar em sua estrutura, em sua prática e em sua ideologia os aparelhos de Estado existentes, suprimir alguns, criar outros, é transformar as formas da divisão do trabalho entre os aparelhos repressivos, políticos e ideológicos, é revolucionar seus métodos de trabalho e a ideologia burguesa que domina suas práticas, é assegurar-lhes novas relações com as massas a partir das iniciativas das massas, na base de uma nova ideologia, proletária, a fim de preparar o ‘perecimento do Estado’, isto é, a sua substituição pelas organizações de massa. Essa exigência sustenta a teoria marxista do Estado”. Louis Althusser, Crise du marxisme et critique de l’État (Champagne-Ardenne: Le Clou dans le Fer, 1978, p. 54).
9 “A tese da intrínseca inferioridade do planejamento centralizado deve explicar como a URSS passou de uma economia atrasada e arrasada pela guerra para a segunda economia industrial do mundo em um espaço de trinta anos”. Carlos Aguiar de Medeiros, citado em: João Quartim de Moraes, “O mito do fracasso econômico da URSS”. Crítica Marxista, n° 40, São Paulo, 2015, p. 136.
10 “Neste aspecto, é surpreendente como boa parte das éticas contemporâneas, tão em voga nas academias, busca encontrar solução para os problemas da sociedade contemporânea, a partir de pretensos princípios morais universalizáveis, sem considerar a sua viabilidade junto à base econômica-material que move a sociedade civil. Como se fosse possível construir-se valores morais justos sobre uma infraestrutura injusta. É o caso das éticas discursivas de K. Apel e J. Habermas e da teoria da justiça de Jonh Rawls”. Luiz Vicente Vieira, A democracia com pés de barro: o diagnóstico que mina as estruturas do Estado de direito (Recife: Editora UFPE, 2006, p. 16).
11 Um bom exemplo prático da relação entre o crescimento de éticas sobre igualdade sem base material e a formação dessa “esquerda responsável” é o próprio PT, como mostra Caio Navarro de Toledo nesse artigo já clássico: “sobre o tema da violência, a tendência ‘Um projeto para o Brasil’ tem uma posição muito nítida. Numa de suas teses, apresentada ao I Congresso do PT, após pleitear a reestruturação da ONU – ‘que precisa ser democratizada e adquirir poder real’ -, propõe que o partido se afirme ‘como uma organização adepta da não violência’. Não deixa de ser ilustrativo que intelectuais e militantes vinculados à tendência PPB, constantemente e com muito entusiasmo, passem a endossar a ética kantiana e as formulações de autores como A. Heller, H. Arendt, J. Habermas e outros. O tema da ética na política é uma preocupação permanente, abordado sob a ótica de um humanismo abstrato que pouco tem a ver com uma perspectiva crítica e materialista”. Caio Navarro de Toledo, “A modernidade democrática da esquerda: adeus à revolução?” Crítica Marxista, 1994, n° 01, p. 37.
12 O pensador marxista James Petras é certeiro ao apontar o núcleo central desse aparente paradoxo entre golpe de quase morte no movimento comunista e enfraquecimento correlato do seu principal rival, os social-democratas: “a esquerda ocidental e intelectuais liberais tiveram um papel vital em ofuscar a importante contribuição positiva que o bem-estar soviético prestou ao pressionar os regimes capitalistas do Ocidente para seguir seu exemplo. Durante as décadas que se seguiram à morte de Stalin e como a sociedade soviética caminhava rumo a um sistema híbrido de welfarismo autoritário, estes intelectuais continuaram a se referir a tais regimes como ‘stalinistas’, obscurecendo a sua principal fonte de legitimação entre os seus cidadãos – seu avançado sistema de bem-estar. Os mesmos intelectuais iriam clamar que o ‘sistema stalinista’ era um obstáculo ao socialismo e viraram os trabalhadores contra seus aspectos positivos como Estado de bem-estar, mantendo o foco exclusivamente no velho ‘Gulag’. Eles argumentavam que a ‘queda do stalinismo’ iria promover uma grande abertura pelo ‘socialismo democrático revolucionário’. Na realidade, a queda do welfarismo-coletivista levou à destruição catastrófica do Estado de bem-estar, tanto no Leste quanto no Oeste, favorecendo a ascendência das mais virulentas formas do primitivo capitalismo neoliberal. Por sua vez, isto levou ao encolhimento do movimento sindical e estimulou a ‘virada à direita’ dos partidos social-democratas e trabalhistas através das ideologias do ‘Novo Trabalhismo’ e da ‘Terceira Via’. Os intelectuais da esquerda ‘anti-stalinista’ nunca entraram em qualquer reflexão séria a respeito de seu próprio papel na derrubada do Estado de bem-estar coletivo, bem como não assumiram qualquer responsabilidade pelas devastadoras consequências socioeconômicas, tanto no Leste quanto no Ocidente”. James Petras, “O Estado de Bem-Estar Ocidental: ascensão e queda do Bloco Soviético”.
13 Sobre o MIR chileno, conferir o livro de Ruy Mauro Marini, Reformismo e a contrarrevolução – estudos sobre o Chile (São Paulo, Expressão Popular, 2019). Sobre o aparato militar do PCB, ver o livro de Paulo Ribeiro da Cunha, Militares e militância: uma relação dialeticamente conflituosa (São Paulo: Editora Unesp, 2013).
14 Referência a uma famosa frase atribuída ao geógrafo Josué de Castro: “existem apenas duas classes sociais, as do que não comem e as dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem”.

Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular, passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

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