PCB-RR

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Deputado Coronel Tadeu (PSL) destrói charge que denunciava violência policial exposta no Congresso


“Quando faz isso, ele está confirmando a violência policial”. A declaração é do chargista Latuff, que teve uma charge arrancada e destruída nesta terça-feira (19) pelo deputado federal Coronel Tadeu (PSL). O trabalho integrava a mostra (Re)Existir no Brasil – Trajetórias negras brasileiras, exibida no Congresso Nacional em razão do Mês da Consciência Negra.
“Essa charge eu fiz em 2013, como parte de minha denúncia contra a violência policial”, disse Latuff ao Sul21 ao comentar o episódio. Ainda de acordo com o chargista, a manifestação do deputado só comprova a mensagem. “Poxa, policial é tão forte, tão valente, tão armado, tá pronto pra tudo, mas não suporta uma única charge, uma simples charge, um cartaz exposto no Congresso Nacional. Isso vem confirmar o velho ditado que a caneta é mais poderosa que a espada”.
Latuff diz ainda que a manifestação violenta só comprova que suas charges estão revelando uma realidade. “Não há nenhuma fake news nessas charges sobre violência policial. Se você tem um parlamentar, que por acaso é um policial militar, que destrói, de maneira violenta, uma charge exposta nos corredores do Congreso Nacional, e que revela exatamente isso, uma cena de execução por parte da polícia, que é uma cena muito comum, todo mundo conhece no Brasil, a imprensa, qualquer cidadão. Quando um policial faz isso, ele está passando um atestado, está confirmando a violência policial”.
Outros parlamentares protestaram contra Coronel Tadeu e prometeram denunciar o caso no Conselho de Ética da Câmara.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

A Cassi é nossa!

Até mesmo os defensores do sim reconhecem os prejuízos que as alterações estatutárias vão causar aos funcionários da ativa, aos aposentados e a própria sustentabilidade da Cassi. Tudo em benefício do Banco e desse governo de abutres que está preparando a privatização do BB.

Ao se recusar a convocar uma assembleia dos funcionários do BB do município do Rio para que, de forma democrática, decidissem o posicionamento do nosso sindicato, a maioria da diretoria obedeceu as ordens da Contraf. Decisões como essa, afastam cada vez mais a base e provocam o esvaziamento dos sindicatos.

Nós, da Unidade Classista  -Bancários RJ, somos minoritários na diretoria do sindicato do Rio e não compactuamos com essas atitudes anti-democráticas e derrotistas.
A hora é de não se render  sem lutar, indicamos o voto NÃO, em defesa da Cassi e dos nossos direitos!

UNIDADE CLASSISTA-Bancários-RJ

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

O Brasil não merece isso

Uma das piores semanas da história do país. O ilegítimo governo do Bozo entrega para as multinacionais alguns dos principais campos do pré-sal, com prejuízos de centenas de bilhões de dólares para o Brasil.

Ao mesmo tempo, ataca os pequenos aumentos reais do salário mínimo, arrocha os servidores públicos, agride ainda mais os orçamentos da saúde e da educação, abre para a privatização a Eletrobrás e a Casa da Moeda, entre outras que ainda virão.

As medidas reduzem ainda mais os direitos trabalhistas, atingindo até o FGTS.
A desculpa é a mesma: o ajuste fiscal. Enquanto a oposição não cerrar fileiras contra essa bazófia e defender a auditoria cidadã da pseudo dívida e provar que os recursos existem, só que vão para os barões das finanças, vamos continuar sendo atacados.
Estamos nos transformando no Chile, infelizmente não o de hoje, mas o do ditador assassino Pinochet.
Fora Bolsonaro!
Afonso Costa é jornalista e militante do PCB.

sábado, 12 de outubro de 2019

Amnésia Seletiva

A Doença Senil do Reformismo


Nos últimos meses observamos um fenômeno inusitado. Trata-se de uma amnésia seletiva que vem contaminando setores da chamada “esquerda”. Diferentemente da “justiça seletiva”, que é uma prática da institucionalidade burguesa para alijar adversários políticos e jogá-los na cadeia sem culpa formada, conforme sucedido com o ex-presidente Lula, essa amnésia seletiva constitui-se numa operação de propaganda, visando encobrir, na história recente, tudo aquilo que exponha contradições de determinada vertente político-ideológica. 

Segundo definição médica, amnésia seletiva é a incapacidade de lembrar certos fatos que aconteceram num determinado período de tempo, podendo estar relacionada ao estresse prolongado ou ser consequência de um evento traumático.  Na política isso se chama oportunismo. É justamente com essa “incapacidade de lembrar” que nos deparamos em alguns artigos e pronunciamentos recentes sobre os governos Lula e Dilma. Os autores, com seus esquecimentos seletivos, dão a entender que nesse período estávamos vivendo num quase paraíso, onde liberdade, justiça social e prosperidade imperavam.
Repressão contra a greve dos profissionais do ensino, setembro 2013, RJ.
Não temos a pretensão, nestas poucas linhas, de trazer à luz tudo o que essa amnésia seletiva insiste em ocultar, mas podemos destacar alguns pontos. O primeiro está relacionado às expectativas criadas após vitória do Lula em 2002, derivadas da origem classista do PT e do discurso desse partido quando fazia oposição, todo ele centrado na crítica ao neoliberalismo e à corrupção. Mas antes mesmo de assumir, Lula divulgou sua famosa “carta aos brasileiros”, que pelo teor deveria ser denominada “carta aos banqueiros”. Ali foi delineado o que estaria por vir em termos de política econômica, ou seja, nos seus pontos essenciais nada seria mudado. A indicação do ex-presidente do BankBoston, Henrique Meirelles, com carta branca para dirigir o Banco Central, onde permaneceria durante os dois mandatos de Lula, atendeu plenamente aos interesses do setor financeiro e do imperialismo. As privatizações realizadas por Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, antes criticadas, foram todas elas mantidas. A escandalosa entrega dos nossos recursos seguiu em frente através dos leilões dos campos de petróleo. O mesmo se deu com o mecanismo extorsivo da dívida interna, consumindo algo em torno de 40% do orçamento federal para alegria dos banqueiros e grandes investidores. Não por acaso, "como nunca antes na história desse país", o lucro do oligopólio bancário disparou nos 13 anos em que o PT esteve à frente do governo.

Outra lembrança que não deveria ser apagada refere-se à política agrária. Nos tempos em que estava na oposição, o PT fazia a defesa da Reforma Agrária, dos trabalhadores sem-terra, dos pequenos produtores rurais e de uma agricultura sustentável, voltada principalmente para garantir o consumo interno. Depois que assumiu o governo a coisa mudou. Lula e Dilma se notabilizaram por uma aliança explícita com o agronegócio, coroada pela entrega, no segundo mandato da Dilma, do ministério da agricultura para ex-presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a pecuarista e senadora Kátia Abreu, desde sempre uma ferrenha inimiga do MST. O setor foi abastecido por crédito farto e subsidiado, além de favorecido por medidas provisórias (422 e 458), que ficaram conhecidas como as “MPs da grilagem”, deixando mais de sessenta milhões de hectares de terras públicas na Amazônia a disposição dos grileiros. Enquanto os grandes proprietários de terra eram agraciados com essas medidas, os assentamentos de famílias de trabalhadores sem-terra não tiveram avanço significativo, diminuindo sensivelmente durante o governo Dilma, até mesmo quando comparados com o período de FHC.
Manifestantes cercados em Belo Horizonte, Copa do Mundo 2014.
Outras lacunas na memória dos acometidos por essa amnésia estão relacionadas aos ataques às liberdades democráticas.  Não falam da repressão aos movimentos grevistas, dos assassinatos de lideranças rurais e da violência das operações policiais nas áreas mais pobres das grandes cidades. Silenciam sobre a Lei Antiterrorismo, a aplicação do decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e o gigantesco aparato repressivo usado contra as manifestações populares na Copa do Mundo 2014 e no Jogos Olímpicos 2016. Mesmo fatos mais recentes, ocorridos após o golpe parlamentar que afastou Dilma, não são lembrados, como o voto favorável do PT e dos seus aliados à cláusula de barreira e à proibição das coligações proporcionais, essa última aprovada também pelo PSOL.

O reformismo senil esperou, provavelmente sentado, por uma “autocrítica” do PT, como ela não veio e novas eleições se aproximam, essa amnésia seletiva parece que vem bem a calhar.
Ney Nunes
Outubro de 2019
Fonte:https://pagina1917.blogspot.com/2019/10/amnesia-seletiva.html

domingo, 1 de setembro de 2019

Os Abutres Querem Mais

                                                                                                               Ney Nunes

   O governo Bolsonaro divulgou esta semana uma lista de empresas estatais que pretende privatizar. É verdade que já nos restam poucas. Os governos anteriores, principalmente Collor, Itamar Franco e FHC, trataram de liquidar o patrimônio público, transferindo grandes empresas por preços irrisórios aos investidores. Algumas dessas companhias, considerando o valor dos seus bens e o potencial de lucros, foram verdadeiras doações, como Usiminas, Vale do Rio Doce, Telebrás, CSN, Embraer e a LIGHT.
     A lista divulgada, apesar de nela constarem empresas do porte dos Correios e a Eletrobrás, ainda assim, não agradou aos capitalistas e seus lacaios, digo, porta-vozes. Na mídia burguesa os analistas, todos neoliberais de carteirinha, lamentaram a ausência na lista da Petrobras, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. Para esses abutres de aluguel, o governo Bolsonaro apresentou um pacote de privatizações “desidratado”. Segundo eles, o ministro Paulo Guedes pretende privatizar tudo, mas o presidente boquirroto está atrapalhando com suas hesitações.

Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardemberg lamentaram o pacote "desidratado".
     Esses abutres não se envergonham de repetir os mesmos argumentos desmoralizados que levantavam em favor das privatizações dos anos noventa. Segundo eles, com aquelas privatizações, tudo seria resolvido, sobrariam recursos para investir em saúde, educação e segurança, a crise fiscal estaria resolvida e seria o fim da corrupção. Decorridos quase trinta anos, absolutamente nada disso se confirmou. O que, na verdade, se pode comprovar, é que os grupos empresariais que abocanharam as estatais ganharam rios de dinheiro às custas do patrimônio público e nenhum dos grandes problemas nacionais foi equacionado, pelo contrário, se agravaram. O país vem afundando na miséria e no desemprego.
    Os saques ao patrimônio público, aos recursos naturais e a retirada das conquistas sociais duramente conquistadas, como direitos trabalhistas e de previdência social, fazem parte do receituário neoliberal diante da aguda crise do capitalismo que se iniciou em 2008. Mesmo com um traidor da pátria na presidência, disposto a cumprir à risca esse receituário e colocar o Brasil a serviço dos interesses econômicos e políticos dos EUA, os abutres não estão saciados. A pressa e a voracidade quanto ao pacote de privatizações de Guedes/Bolsonaro, expressas pelos capitalistas e seus lacaios diariamente na mídia burguesa, refletem bem o desespero de uma classe dominante em total decadência.


  

quarta-feira, 24 de julho de 2019

A fraqueza da ilusão democrática.

Um ensaio político não sentimental

Por Jones Manoel.

O ano de 2016 foi emblemático na história política brasileira. O Partido dos Trabalhadores (PT), organização política surgida no bojo da resistência à ditadura empresarial-militar, originalmente com tendências pronunciadamente socialistas, foi despojado da Presidência da República. O PT tem que viver com a amarga experiência de redescobrir a existência da luta de classes, do imperialismo, da não-neutralidade republicana dos aparelhos do Estado etc. Marilena Chaui, lamentavelmente, também teve que lembrar que o maior mal do mundo não reside na “classe média” paulista.
Aparentemente, a burguesia brasileira, em suas diversas frações, não aprendeu o respeito bobbiano às regras do jogo. Já a esquerda pós-comunista, como muitos queriam nos anos 1980 do século XX, aprendeu o “valor da democracia”: as principais tendências da esquerda nos últimos trinta anos respeitaram religiosamente os limites impostos pela democracia burguesa no Brasil e, de tanto respeitarem, como prezam as regras explícitas, mas não ditas do jogo, passaram a ser fiéis gerentes do sistema.
As esperanças brasileiras no processo de redemocratização – que optamos por chamar de otimismo democrático – foram derrotadas. Aliás, mais que isso, esperava-se dos anos 1980 uma oportunidade única para combater o “autoritarismo” e a “exclusão social” históricos da formação socioeconômica brasileira.
Inegavelmente, o otimismo tinha uma razão de ser. Afinal não é em toda conjuntura histórica que, depois de mais de duas décadas de ditadura, emerge um pulsante movimento operário e popular. Tudo podia acontecer. E, no que é essencial, nada aconteceu. O sistema político brasileiro continuou fundamentado numa democracia restringida e com uso dilatado do terrorismo de Estado por meio de uma política sistemática de extermínio frente a segmentos da classe trabalhadora – notadamente, a população negra das favelas brasileiras.
No ano do golpe parlamentar, pudemos constatar que o Estado brasileiro mata, tortura e viola mais os direitos humanos que na época da ditadura empresarial-militar. O extermínio sistemático – enquanto política de Estado – segue firme e encontra até uma forma jurídica e constitucional para sua reprodução: os autos de resistência (Zaccone, 2014). A militarização da vida social não parou de crescer: um soldado do Exército Brasileiro passa, em média, cem dias do ano em atividades “internas” (policiamento) – ver a coletânea Até o último homem, organizada por Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira.
Ironicamente, Orlando Zaccone pergunta “o que resta da ditadura?” E responde, ecoando Tales Ab’Saber, tudo, menos a ditadura! A democracia burguesa é bem mais parecida com a ditadura militar burguesa do que suspeitava o otimismo democrático dos anos 80. Porém, curiosamente, a cada nova constatação de que a democracia e o famoso “Estado de Direito” estão longe das ideias dos livros e dos discursos, os setores hegemônicos da esquerda, ao invés de questionarem a própria ideia de democracia abraçada, optam por reforçar suas convicções anteriores insistindo que a democracia é pouco democrática e precisa ser democratizada1. Num ciclo de imunidade auto-atribuída, o problema da democracia se resolve com mais democracia e cada “regressão democrática” deve ser respondida com uma defesa mais enfática da democracia.
O objetivo dessa reflexão é debater a regressão democrática da democracia, abordar o processo de retirada dos direitos democráticos da classe trabalhadora no âmbito da democracia burguesa e o consequente empobrecimento teórico e político dos setores majoritários da esquerda brasileira e mundial na crítica à democracia realmente existente. A chave analítica fundamental que guiará nossa análise é a distinção política e teórica entre direitos democráticos e democracia burguesa, buscando demostrar as diferenças e os desencontros entre ambos e como a confusão entre as duas produziu nas últimas décadas um enfraquecimento significativo na crítica e nas possibilidades revolucionárias.

Somos todos democratas

Na história de organização da classe trabalhadora, desde a gênese do capitalismo, sempre houve concepções diferentes do que é democracia. Até mesmo nas revoluções burguesas europeias, especialmente francesa e inglesa, é possível identificar setores mais radicalizados que apresentavam propostas avançadas do que chamaríamos hoje de soberania popular e igualdade social – como o caso do jacobinismo, na França.
A primeira grande expressão da maturidade organizativa e política da classe operária europeia, a socialdemocracia, continha um projeto de democracia antagônico ao defendido pela classe dominante: o liberalismo, expressão ideológica da burguesia, compreendia uma concepção jurídico-formal e restritiva de democracia (igualdade jurídica e direitos políticos apenas para os homens brancos, proprietários e europeus) e descarta qualquer conteúdo “social” na dimensão do regime político.
A socialdemocracia apresentava uma concepção ampla de democracia, alargando a esfera dos iguais e dos portadores de direitos políticos e exigindo, de forma indispensável, que a democracia tivesse um conteúdo social: o fim da propriedade privada e da anarquia na produção, compreendidos, à época, como os principais elementos do capitalismo, eram determinantes fundamentais da realização da verdadeira democracia.
Durante boa parte do século XX, por matrizes diferentes, houve um confronto entre concepções diferenciadas de democracia. Esse gigantesco embate teórico e político foi esvaziado nos anos 1980. De 1917 até a década de 1970 – entre grandes derrotas, como a Revolução Alemã e a Guerra Civil Espanhola, e grandes vitórias, como as revoluções Russa, Chinesa, Cubana e Coreana – o conflito entre capital e trabalho no âmbito mundial encontrava-se numa situação de relativo equilíbrio. Embora a maioria do mundo fosse capitalista, a distância entre, por um lado, as forças do capital e, por outro, as forças dos povos coloniais e da classe trabalhadora, não era tão discrepante e existiam ameaças reais de superação do capitalismo.
Com a contrarrevolução neoliberal e neocolonial que avançou ao final dos anos 1970, ganhou forças na década seguinte e foi finalmente vitoriosa nos anos 90 – indo além dos sonhos mais otimistas da ordem dominante com a derrubada da União Soviética e das democracias populares do Leste Europeu –, instala-se uma situação social na qual a crítica radical do existente, e, portanto, da democracia, não estava na ordem do dia e foi banida do debate teórico. A despeito da valentia de intelectuais tomados individualmente que se recusaram a capitular e a aceitar “o fim da história”, formou-se um “consenso conservador sobre a democracia2.
A democracia em sua versão liberal parlamentar, tida apenas como uma competição eleitoral regular entre partidos semelhantes, passou a ser o sinônimo da única democracia possível e aceitável. O revezamento sistemático do poder entre partidos da classe dominante, liberais ou conservadores, socialdemocratas ou neoliberais, que executam basicamente o mesmo programa e garantem que “não há alternativa”.
Nesse cenário, os poucos que se atreviam a debater os limites da democracia burguesa – agora não mais adjetivada como tal – eram logo tachados de autoritários ou totalitários. Três noções são fundamentais para a hegemonia do consenso conservador em torno da democracia burguesa. A primeira (talvez a que se mantém mais sólida nos dias atuais) é que a esquerda revolucionária (sobretudo os comunistas) seria antidemocrática, violadora dos direitos humanos e que sacrifica no altar da igualdade social as liberdades individuais. Como consequência disso, as experiências de transição socialista, chamadas em linguagem jornalística de “países” ou “governos” comunistas, se resumiriam a regimes autoritários ou totalitários – e a crítica/denúncia do “stalinismo” evidentemente desempenha um papel central nessa narrativa3.
Se o principal problema das experiências de transição socialista foi a ausência de democracia e o autoritarismo dos Partidos Comunistas, é necessário compreender a importância do valor em si da democracia. Aqui entramos na segunda noção. Os anos 1980 e 90 marcaram processos muito importantes: o fim do apartheid na África do Sul e o término de várias guerras de libertação nacional em África, a saída de cena do ciclo de ditaduras militares do grande capital na América Latina e a legalização/desarmamento de agrupamentos político-militares revolucionários na América Central. Nesses processos, já numa correlação de forças política e militar em âmbito mundial desfavorável e com a hegemonia neoliberal consolidada, vários ex-revolucionários das mais diversas matizes, aceitaram que não se tratava de pôr termo à dependência, ao subdesenvolvimento e às democracias burguesas, mas recuperar ou criar uma democracia liberal burguesa.
O desenrolar histórico é, por si só, expressivo, e podemos abordar rapidamente como exemplo o caso da África do Sul. O regime pós-apartheid, dirigido Nelson Mandela e seu partido (Congresso Nacional Africano), garantiu a vigência de uma igualdade jurídico-formal, mas a segregação étnico-racial nos seus vários determinantes (geográfico, econômico, cultural, social e político) não só se manteve, como foi ampliada. Em suma, na democracia pós-apartheid na África do Sul, mantém-se intacto o Estado racialista4.
O complemento necessário desse violento desarme político e teórico é o banimento da tematização do imperialismo, do colonialismo e da máquina de guerra operante em todos os cantos do planeta, mas em especial na periferia do sistema – a terceira noção desse consenso democrático. A derrota do movimento comunista no século XX foi acompanhada da derrota da revolução anticolonial que marcou a América, a África e a Ásia (revolução que politicamente teve várias expressões, como o movimento terceiro-mundista, o nacionalismo revolucionário e a fusão entre patriotismo e marxismo, como na Revolução Coreana e Chinesa); o imperialismo, nos anos 90, retoma uma ofensiva neocolonial de proporções assustadoras e, justamente nesse momento, some de cena a reflexão sobre o imperialismo, o colonialismo e o complexo industrial-militar5.
Enquanto o neocolonialismo vivia seu melhor momento desde a ascensão do nazifascismo, as modas acadêmicas do momento falam em micropoder, disciplina, poder simbólico, fim do Estado Nacional e dominação burguesa especialmente por meio da ideologia. Poucas vezes na história foi possível achar um momento em que reflexões que se pretendiam críticas ao establishment (em aspectos totais ou parciais) se descolaram tanto da realidade6. Como ciclos que se completam, a negação de qualquer “aspecto positivo” nas experiências de transição socialista se combina com a canonização “crítica” ou acrítica da democracia (burguesa) e se fundem com o banimento de qualquer reflexão a respeito do imperialismo, do militarismo e do colonialismo. Surge o melhor dos mundos: um mundo em que não haveria mais espaço para ditaduras, golpes militares ou o fascismo e todos serão beneficiados pela globalização. O grande problema da ideologia dominante é que a realidade teima em contradizê-la.

A regressão democrática da democracia

Domenico Losurdo, no seu livro Contra-história do liberalismo, demostra que o pensamento liberal, desde o seu surgimento, foi uma ideologia que buscou compreender a liberdade como um direito da comunidade dos livres: homens brancos, proprietários e europeus (dos países centrais da Europa). Os trabalhadores eram considerados não-humanos, como máquinas falantes, os escravos e os povos coloniais apareciam como essência da inumanidade, e as mulheres recebiam a qualificação de seres inferiores.
Nunca houve dúvidas para a burguesia de que era necessário construir um sistema político que tivesse como objetivo primeiro a defesa da propriedade privada e da riqueza fruto da exploração: o mecanismo de câmaras legislativas para os lordes, o voto censitário, a proibição da montagem de partidos operários e sindicatos, a negação de votos para analfabetos e mulheres, a perseguição à imprensa operária, o terrorismo estatal etc. exemplificam esse momento histórico.
Portanto, a burguesia nunca confundiu a democracia política (isto é, liberdade de organização partidária, imprensa, reunião, manifestação, etc.) para a classe trabalhadora (ou seja, a imensa maioria da população), com seu regime constitucional-parlamentar. A primeira é criação da classe trabalhadora nos seus enfrentamentos contra o capital, enquanto o último é criação da burguesia sob o liberalismo. A relação entre regime burguês e democracia política em tempo algum foi harmoniosa. Ao aceitar pela força a participação da classe operária no “jogo” democrático-burguês, a classe dominante nunca deixou de buscar mecanismos de exclusivismo no exercício do poder: a lógica é permitir a participação política da classe trabalhadora negando sua incidência nos centros de controle do poder político.
Não é nosso objetivo nesta coluna detalhar os mecanismos mobilizados pela classe dominante a fim de esvaziar qualquer possibilidade mínima de incidência da classe trabalhadora no poder por meio da participação política institucional. O fato importante é o seguinte: para a ordem do capital sempre foi clara a distinção entre os direitos democráticos e seu regime constitucional.
Contudo, há que se considerar um fenômeno importante já brevemente pontuado: durante a fase de ascensão das lutas proletárias e dos povos coloniais, a tensão entre regime burguês e direitos democráticos chegou a tal ponto que condicionou várias rupturas democráticas, ensejando soluções fascistas, ditaduras militares e/ou invasões militares neocoloniais. Houve, efetivamente, momentos em que a burguesia não suportou a sua democracia burguesia, porém, ao mesmo tempo em que a democracia política sob o Estado burguês era um impedimento temporário para seguir num padrão de acumulação de capital desejável, era um limitador da ação das classes subalternas contra a ordem do capital; exemplo significativo é o Chile da Unidade Popular7.
Durante a contrarrevolução neoliberal e neocolonial, ganhou força um fenômeno novo em sua proporção: a gigantesca regressão dos direitos democráticos da classe trabalhadora sem precisar de rupturas institucionais. Um dos exemplos mais significativos desse processo é a chamada “onda punitiva” e a formatação do Estado penal nos países centrais do capitalismo (ver as obras do sociólogo francês Loïc Wacquant, em especial As duas faces do gueto As prisões da miséria).
Todo esse processo de regressão democrática dos direitos da classe aconteceu com uma inestimável contribuição dos aparelhos de repressão e espionagem do Estado burguês. A narrativa de uma “sociedade ocidental” na qual a repressão cede lugar progressivamente à luta pelo consenso na dominação burguesa, perde de vista que, frente ao aumento da densidade da rede associativa das classes em luta na disputa ideológica, a classe dominante respondeu com a criação de aparelhos de repressão/controle/vigilância herméticos a qualquer controle popular ou público. Esses aparelhos atuam numa permanente “guerra suja” contra os movimentos e organizações das classes subalternas: sequestros, assassinatos, infiltrações, roubos, sabotagens, apoio a golpes de Estado, falsificação de eleições, promoção de determinadas vertentes culturais e guerra econômica estão entre algumas atividades promovidas pela CIA e o FBI – paradigmas maiores desse tipo de aparelho estatal burguês, que se generalizou e profissionalizou nos países centrais do capitalismo no pós Segunda Guerra8.
O avanço da classe dominante em seus objetivos de fazer regredir os direitos democráticos dentro da democracia burguesa é sempre facilitado pela própria posição de classe das personificações do capital. Democracia política não é a mesma coisa que dominação burguesa, mas, sob o Estado burguês, toda democracia política é uma forma de dominação burguesa.
Isso ocorre porque: a) Os centros decisórios estratégicos do Estado estarão sempre subordinados ao interesse geral de acumulação do capital (o que não se confunde com o interesse de um capitalista ou um de grupo deles tomado como exemplo “empírico”); b) são tomados como fato dado, natural de um ponto de visto ideológico, político e jurídico, a propriedade privada dos meios de produção, a apropriação privada da riqueza e a mercantilização da força de trabalho; c) por ter o poder econômico concentrado, a burguesia em suas diversas frações está estruturalmente em vantagem na disputa pelo controle dos diversos aparelhos do Estado e, quando perde aparelhos centrais, como um Governo Federal, dispõe de uma rede de aparelhos de hegemonia privados que conseguem com relativa facilidade paralisar ou destruir a ação incômoda do aparelho estatal que se tornou disfuncional.
Dito de maneira mais simples: sobre a base capitalista, toda democracia é burguesa, embora os direitos democráticos sejam conquistas da classe trabalhadora. Cabe, portanto, a pergunta: qual é o fator determinante que permite em determinadas conjunturas a classe trabalhadora impor conquistas democráticas ou tornar disfuncional a democracia burguesa? Resposta: a ação de classe com radicalidade na defesa não da democracia em si, mas dos direitos democráticos da classe9. Em todos os momentos históricos em que a classe trabalhadora avançou em conquistas democráticas se deu em um horizonte onde se pretendia muito mais que melhorar o Estado burguês. Isto é, foi criticando agudamente os limites da democracia burguesia e buscando radicalmente superá-la que foi possível impor uma relativa democratização do Estado burguês.
No caso brasileiro, o Partido dos Trabalhadores, em sua origem advoga a conquista do poder político. O PT dizia, numa formulação de clara inspiração leninista clássica, que não existe exemplo de transição socialista iniciada sem os trabalhadores tomarem o poder do Estado (ver as obras de Mauro Iasi, em especial, As metamorfose da consciência de classe e Estado, política e ideologia na atual trama conjuntural).
A não aliança com partidos da ordem, independência financeira e política, o foco na luta de massas e não na disputa institucional e o programa político radical foi o principal vetor de resistência à transição conservadora da ditatura empresarial-militar à democracia burguesa. Por uma série de determinantes históricos que não cabe aprofundar nesse momento, o PT progressivamente suavizou a radicalidade do programa, abrandou a independência de classe financeira e política, centrou-se na luta institucional e passou a defender como sinônimo de “caminho democrático ao socialismo” a atuação nos marcos da democracia (burguesa) brasileira.
A consequência é o esvaziamento da ação de classe dos subalternos como vetor de resistência ao fortalecimento da autocracia burguesa, e a conversão do PT em operador político do sistema, deixando “legados” perfeitos à dominação de classe, como a lei antiterrorismo, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e o apassivamento dos explorados. Nas palavras de Mauro Iasi:
“As mudanças que se verificam não se operam aleatoriamente, mas no sentido de recolocar a consciência que se emancipava de volta nos trilhos da ideologia. Não é, em absoluto, certas palavras-chaves vão substituindo, pouco a pouco, alguns dos termos centrais das formulações: ruptura revolucionária por rupturas, depois por democratização radical, depois por democratização e finalmente chegamos aos “alargamento das esferas de consenso”; socialismo por socialismo democrático, depois por democracia sem socialismo; socialização dos meios de produção por um controle social do mercado; classe trabalhadora, por trabalhadores, por povo, por cidadãos; e eis que palavras como revolução, socialismo, capitalismo, classes, vão dando lugar cada vez mais marcante para democracia, liberdade, igualdade, justiça, cidadania, desenvolvimento com distribuição de renda”.
Mauri Luis Iasi, Mauro Luis Iasi, As metamorfose da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento (São Paulo: Expressão Popular, 2006), p. 435.
Em resumo, o consenso conservador em torno da democracia é o norte de uma época histórica de brutal regressão da democracia política, e as respostas hegemonicamente formuladas pela esquerda (a perspectiva de democratizar a democracia) não estão conseguindo fazer frente a esse fenômeno. O desarme teórico está imbricado com a derrota política num processo de retroalimentação.

Conclusão

O adversário de classe não está retrocedendo na democracia. Esta conclusão não impõe posturas esquerdistas e mecanicistas que não conseguem apreender, para as classes dominadas, a diferença entre lutar sob uma democracia burguesia ou sob uma ditadura fascista. A mudança de rota que deve ser operada pelas forças de esquerda empenhadas em derrubar a ordem capitalista tem como prisma primeiro encarar a democracia burguesa como ela realmente é: na democracia realmente existente, a violência, o terrorismo estatal, a negação de direitos básicos (como liberdade de imprensa e organização sindical), os massacres no campo, os autos de resistência e a história de milhares na mesma situação de Rafael Braga não constituem um desvio, uma perversão, do ideal do Estado democrático de Direito – são o seu funcionamento concreto, são a sua essência de classe em movimento.
O confronto da democracia realmente existente deve andar casado com a defesa intransigente, estratégica, dos direitos democráticos da classe trabalhadora. A democracia política sempre carregou altíssimo potencial de contradição com a ordem burguesa. A novidade, contudo, é que nesse momento de crise estrutural do capital e ofensiva neocolonial, tal contradição é aguçada. O golpe parlamentar de 2016 e a posterior eleição de Jair Bolsonaro, enquanto particularidades da conjuntura brasileira, impõem, igualmente, um sério e profundo reexame da trajetória da esquerda brasileira nas últimas décadas.
Não é mais possível depois dessa vergonhosa derrota política e moral continuar com “mais do mesmo”, como, por exemplo, ainda manter esperanças no STF ou em votações na Câmara dos Deputados.
A conclusão que se impõe, portanto, é máximo combate à democracia burguesa e máxima defesa dos direitos democráticos da classe trabalhadora. Dentro desta perspectiva temos um norte de atuação para uma retomada crítica da luta política no âmbito da “questão democrática”. Democratizar a democracia é a forma política do reformismo burguês. Tal como as ideologias do crescimento econômico com a distribuição de renda, democratizar o Estado burguês retira do horizonte a luta pelo poder popular, isto é, pela derrubada do Estado burguês e a construção de uma verdadeira democracia fundada na propriedade social com economia planificada e democracia operária. Não há futuro fora da luta pelo poder popular.
Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular, passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

DIA 12 DE JULHO: BORA PRA RUA!

As recentes derrotas de Bolsonaro no congresso e o vazamento da operação criminosa do ex-juiz golpista e atual ministro da justiça Sérgio Moro não afetaram em nada a tramitação da reforma da previdência. Conforme já havíamos afirmado, a espinha dorsal do projeto continua intacta e os acordos entre as frações da burguesia para a reinclusão de estados e municípios e da capitalização já estão sendo costurados em seu balcão de negócios.
Para piorar o quadro, a greve de 14/06, apesar de ter sido um importante passo para a luta contra a reforma da previdência e para a reorganização da classe trabalhadora, ficou aquém de nossas necessidades, muitos trabalhadores ainda não perceberam o tamanho dos problemas que serão causados pela reforma e por todos os demais ataques que ainda virão do nefasto governo de Jair Bolsonaro.
Por outro lado, nem tudo são espinhos, pois na próxima sexta-feira, dia 12 de julho, em Brasília, trabalhadores de diversos setores e estudantes que estarão realizando mais um importante “CONUNE” – Congresso Nacional da União Nacional dos Estudantes – decidiram retomar a luta e realizarão mais uma grande manifestação unificada contra a reforma, em defesa da educação e das liberdades democráticas.

Se você não tem condições de ir a Brasília, também pode e deve participar e organizar as manifestações em sua cidade, a exemplo do que ocorreu nos dia 15 e 30/05 e no dia 14/06, quando trabalhadores da educação, servidores públicos, bancários, metalúrgicos, metroviários, petroleiros e tantos outros em conjunto com os estudantes realizaram excelentes jornadas de luta.
Mais do que nunca é necessário intensificar os esforços na construção do FÓRUM SINDICAL, POPULAR E DE JUVENTUDE, dos FÓRUNS DE LUTA EM DEFESA DAS APOSENTADORIAS, das FRENTES SINDICAIS CLASSISTAS e dos TERRITÓRIOS SEM MEDO, pois a partir destes espaços, organizaremos e impulsionaremos ações de formação e mobilização da classe.
A hora de reorganizar a classe trabalhadora para o novo ciclo de lutas é agora, dia 12 de julho, bora pra rua!




Avante camaradas!

Construir a Greve Geral e Reorganizar a Classe Trabalhadora!
Unidade Classista, futuro socialista!

terça-feira, 25 de junho de 2019

O Brazilgate transforma-se no Russiagate 2.0

 "Ridiculamente, a bomba de The Intercept acerca da corrupção brasileira está a ser alardeada pelos media e militares do país como uma conspiração russa".

por Pepe Escobar [
Foi um vazamento, não um hack. Sim: o Brazilgate, lançado por uma série debombas revolucionárias publicadas porThe Intercept, pode estar a transformar-se num Russiagate tropical.

O Garganta Funda de The Intercept – uma fonte anónima – finalmente revelou em pormenores o que qualquer um com meio cérebro no Brasil já sabia: que a máquina judicial/legal da investigação unilateral do Lava Jato era de facto uma farsa maciça e uma trapaça criminosa destinada a realizar quatro objectivos.


  • .Criar as condições para o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e a subsequente ascensão de seu vice, o fantoche manipulado pela elite Michel Temer. 
  • Justificar a prisão do ex-presidente Lula em 2018 – exactamente quando ele estava para vencer a eleição presidencial seguinte com uma vitória esmagadora. 
  • Facilitar a ascensão da extrema-direita brasileira via Steve Bannon (ele o chama de "capitão") Jair Bolsonaro. 
  • Instalar o ex-juiz Sergio Moro como ministro da Justiça com esteroides capazes de promulgar uma espécie de Patriot Act brasileiro – pesado em espionagem e ligeiro quanto a liberdades civis.
Moro, lado a lado com o promotor Deltan Dallagnol, o qual liderava as 13 forças-tarefa do Ministério Público, são as estrelas vigilantes da trapaça do lawfare . Ao longo dos últimos quatro anos, os hiperconcentrados media de referência brasileiros, afundados num pântano de fake news, glorificaram essa dupla como heróis nacionais dignos do Capitão Marvel. A arrogância acabou por afundá-los no pântano.

Os mafiosos brasileiros 

The Intercept prometeu divulgar todos os ficheiros na sua posse, chats, áudio, vídeos e fotos, um acervo supostamente maior que o de Snowden. Aquilo que foi publicado até agora revela Moro/Dallagnol como um duo estratégico em sincronia, com Moro como um capo di tutti i capi , juiz, júri e executor numa só pessoa – repleto de falsificações em série de provas. Isso, por si só, é suficiente para anular todos os casos da Lava Jato em que ele esteve envolvido – incluindo o processo contra Lula e as sucessivas convicções baseadas em "evidências" que nunca se sustentariam em um tribunal sério.

Em conjunto com uma abundância de detalhes escabrosos, o princípio Twin Peaks [1] – as corujas não são o que parecem – aplica-se plenamente ao Brazilgate. Porque a génese do Lava Jato envolve nada menos que o governo dos Estados Unidos. E não apenas o Departamento de Justiça (DoJ) – como Lula tem insistido há anos em todas as suas entrevistas. A operação foi do Estado Profundo.

A WikiLeaks havia revelado isso desde o início, quando a NSA começou a espionar a gigante de energia Petrobrás e até mesmo o telefone smart de Dilma Rousseff. Em paralelo, inúmeras nações e indivíduos aprenderam como a auto-atribuída extraterritorialidade do DoJ permite que ele persiga qualquer pessoa, de qualquer maneira, em qualquer lugar.

Isto nunca foi sobre anti-corrupção. Trata-se, ao invés, da "justiça" americana a interferir em todas as esferas geopolíticas e geoeconómicas. O caso mais gritante e recente é o da Huawei.

No entanto, o "comportamento maligno" dos mafiosos Moro/Dallagnol atingiu um novo nível perverso na destruição da economia nacional de uma poderosa nação emergente, um membro do BRICS e líder reconhecido em todo o Sul Global.

O Lava Jato devastou a cadeia de produção de energia no Brasil, a qual por sua vez gerou a venda – abaixo dos preços de mercado – de muitas reservas valiosas de petróleo do pré-sal, a maior descoberta de petróleo do século XXI.

A Lava Jato destruiu campeões nacionais em engenharia e construção civil e também em aeronáutica (como na Boeing comprando a Embraer). E a Lava Jato comprometeu fatalmente importantes projectos de segurança nacional, como a construção de submarinos nucleares , essenciais para a protecção da " Amazônia Azul ".

Para o Council of America – visitado por Bolsonaro em 2017 –, bem como o Council on Foreign Relations – para não mencionar os "investidores estrangeiros" – ter o Chicago boy neoliberal Paulo Guedes instalado como ministro das Finanças era um sonho ardente. Guedes prometeu de imediato colocar virtualmente todo o Brasil à venda. Até agora, sua tarefa tem sido um fracasso absoluto.

Como abanar o cão 

Os mafiosos Moro/Dallagnol eram "apenas um peão no seu jogo", para citar Bob Dylan – um jogo de que ambos estavam inconscientes.

Lula enfatizou repetidamente que a questão-chave – para o Brasil e para o Sul Global – é a soberania. Sob Bolsonaro, o Brasil foi reduzido ao status de uma neocolonia de bananas – com abundância de bananas. Leonardo Attuch, editor do portal líder Brasil247 , diz que "o plano era destruir Lula, mas o que foi destruído foi a nação".

Tal como está, os BRICS – uma palavra muito suja na Beltway – perderam o seu "B". Por muito que possam valorizar o Brasil em Pequim e Moscovo, o que está a funcionar no momento é a parceria estratégica "RC" , embora Putin e Xi também estejam fazendo o melhor que podem para reviver "RIC", tentando mostrar à Índia de Modi que a integração eurasiana é o caminho a seguir, não o de desempenhar um papel de apoio na difusa estratégia indo-pacífica de Washington.

E isso nos leva ao cerne da questão do Brazilgate: como o Brasil é o cobiçado prémio na narrativa estratégica mestra que condiciona tudo que acontece no tabuleiro de xadrez geopolítico no futuro previsível – a confrontação sem limites entre os EUA e a Rússia-China.

Já na era Obama, o Estado Profundo dos EUA identificou que para incapacitar os BRICS a partir de dentro o nó estratégico "fraco" era o Brasil. E, sim; mais uma vez, trata-se do petróleo, estúpido.

As reservas de petróleo do pré-sal podem ser avaliadas em até espantosos US$30 milhões de milhões. A questão não é apenas o governo dos EUA querer uma parte disso; a questão é ele quer controlar a maior parte da ligações petrolíferas do Brasil com a interferência dos poderosos interesses do agronegócio. Para o Estado Profundo, o controle do fluxo de petróleo do Brasil para o agronegócio equivale à contenção/alavancagem contra a China.

Os EUA, o Brasil e a Argentina, em conjunto, produzem 82% da soja mundial. A China implora soja. Esta não virá da Rússia ou do Irão – os quais por outro lado podem fornecer à China petróleo e gás natural suficientes (ver, por exemplo, a energia da Sibéria I e II). O Irão, afinal, é um dos pilares da integração eurasiana. A Rússia pode eventualmente tornar-se uma potência exportadora de soja , mas isso pode levar até dez anos.

Os militares brasileiros sabem que relações estreitas com a China – seu principal parceiro comercial, à frente dos EUA – são essenciais, seja o que for que Steve Bannon possa arengar acerca disso. Mas a Rússia é uma história completamente diferente. O vice-presidente Hamilton Mourão, na sua recente visita a Pequim, onde se encontrou com Xi Jinping, dava a impressão de estar a ler um comunicado de imprensa do Pentágono, dizendo à imprensa brasileira que a Rússia é um "actor maligno" que está a propagar uma "guerra híbrida por todo o mundo".

Assim, o Estado Profundo dos EUA pode estar a cumprir pelo menos parte do seu objectivo final: utilizar o Brasil na sua estratégia Divide et Impera, ou seja, abalar a parceria estratégica Rússia-China.

Isto fica muito mais picante. O Lava Jato, recondicionado como Vaza Jato, também poderia ser descodificado como um jogo de sombras maciço; um cão a abanar, com a cauda composta por dois activos americanos.

Moro era um activo certificado pelo FBI, CIA, DoJ e Estado Profundo. Seu uber-patrão seria, em última análise, Robert Mueller (portanto, Russiagate). No entanto, para a Equipe Trump, ele seria facilmente dispensável – mesmo se fosse o Capitão Justiça a trabalhar para o activo real, o menino Bolsonaro de Bannon. Se caísse, Moro teria a garantia do indispensável paraquedas dourado – completo, com residência nos EUA e palestras em universidades americanas.

Greenwald, de The Intercept, é agora celebrado por todas as vertentes da esquerda como uma espécie de Simon Bolivar americano/brasileiro com esteróides. Mas há um problema enorme. The Intercept é de propriedade de um praticante endurecido da guerra da informação, Pierre Omidyar .

De quem é a guerra híbrida? 

A questão crucial pela frente é o que as forças armadas brasileiras estão realmente a fazer neste enorme pântano – e quão profundamente estarão subordinadas ao Divide et Impera de Washington.

Isto gira em torno do todo-poderoso Gabinete de Segurança Institucional, conhecido no Brasil pela sigla GSI . Os integrantes do GSI estão todos no consenso de Washington. Depois dos anos "comunistas" de Lula/ Dilma, estes sujeitos estão agora a consolidar um Estado Profundo brasileiro supervisionando o controle político em âmbito total, tal como nos EUA.

O GSI já controla todo o aparelho de inteligência, bem como a Política Externa e de Defesa, através de um decreto sub-repticiamente lançado no princípio de Junho, apenas alguns dias antes da bomba de The Intercept. Até o capitão Marvel Moro está sujeito ao GSI; eles devem aprovar, por exemplo, tudo o que Moro discute com o DoJ e o Estado Profundo dos EUA.

Como tenho discutido com alguns dos meus principais interlocutores brasileiros informados, o grande antropólogo Piero Leirner, que sabe em pormenor como pensam os militares, e o advogado internacional suíço e conselheiro da ONU Romulus Maya, um Estado Profundo nos EUA parece estar a posicionar-se como o mecanismo de desova para a ascensão directa dos militares brasileiros ao poder, assim como dos seus responsáveis. Conforme a necessidade, se não seguiu nosso roteiro ao pé da letra – relações comerciais básicas apenas com a China; e isolamento da Rússia – pode-se balouçar o pêndulo a qualquer momento.

Afinal, o único papel prático que o governo dos EUA teria para as forças armadas brasileiras – na verdade, para todas as forças armadas da América Latina – é como tropas de choque da "guerra às drogas".

Não há arma fumegante – ainda. Mas o cenário do Lava Jato como parte de uma operação psicológica extremamente refinada, uma operação psyops com dominância de espectro amplo, uma etapa avançada da Guerra Híbrida, deve ser seriamente considerada.

Exemplo: a extrema-direita, bem como sectores militares poderosos e o império de media da Globo subitamente começaram a propalar que a bomba de The Intercept é uma "conspiração russa".

Quando alguém acompanha o síitio web do principal think tank militar – com muitas coisas praticamente copiadas e coladas directamente da Escola de Guerra Naval dos EUA – é fácil ficar surpreendido com a crença fervorosa deles numa Guerra Híbrida Rússia-China contra o Brasil, onde a cabeça de ponte é fornecida por "elementos anti-nacionais" tais como a esquerda como um todo, bolivarianos venezuelanos, FARC, Hezbollah, LGBT, povos indígenas, pode escolher.

Após o Vaza Jato, uma guerra relâmpago combinada de notícias falsas culpou o aplicativo Telegram ("eles são os maus russos!") por hackear os telefones de Moro e Dallagnol. O Telegram oficialmente desmascarou isso em pouco tempo.

Disseram então que a ex-presidente Dilma Rousseff e a actual presidente do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann, fizeram uma visita "secreta" a Moscovo apenas cinco dias antes da bomba Lava Jato. Confirmei a visita com a Duma [parlamento], bem como o facto de que, para o Kremlin, o Brasil, pelo menos por enquanto, não é uma prioridade. A integração eurasiana é. Isso, por si só, desmascara o que a extrema-direita do Brasil elocubra: Dilma a pedir ajuda a Putin, o qual então liberta seus maudosos hackers.

A Vasa Jato – segunda sessão do Lava Jato – pode estar a seguir os padrões Netflix e HBO. Recorde que a terceira temporada do True Detective foi um êxito absoluto. Precisamos de rastreadores dignos de Mahershala Ali para detectar fragmentos de evidências sugerindo que as forças armadas brasileiras – com apoio total do Estado Profundo dos EUA – podem estar a instrumentalizar uma mistura de Vasa Jato e da Guerra Híbrida "dos russos" para criminalizar a esquerda para sempre e orquestrar um golpe silencioso a fim de se livrar do clã Bolsonaro e do seu QI colectivo sub-zoológico. Eles querem controle total – sem intermediários ridículos. Estarão eles a morder mais bananas do que podem mastigar? 
22/Junho/2019
[1] Twin Peaks é uma série da TV, combinação de drama policial e surrealismo. 
O princípio Twin Peaks é que nada é verdade tal como aparece.. 

[*] Jornalista, brasileiro, colaborador do Asia Times. 

O original encontra-se em consortiumnews.com/...