PCB-RR

terça-feira, 27 de julho de 2021

Os ventos estão mudando

 É de conhecimento público que o processo eleitoral de 2018 foi manobrado por forças conservadoras: a polêmica facada, a ausência nos debates, as notícias falsas, a prisão do candidato com maiores chances de vencer, após forte campanha da mídia empresarial e um processo jurídico ilegal e inconsistente.

Passados cerca de três anos, o beneficiário de toda essa manobra, o atual presidente, irrompe com uma cruzada em defesa do voto impresso para garantir a “lisura” do processo eleitoral.

Ora, que ele conhece manobras eleitorais é mais do que óbvio; agora, que pose de defensor da legitimidade e veracidade do processo eleitoral, é estapafúrdio, chegaria a ser hilário se não fosse a tentativa de uma nova manobra, desta feita inspirada no último processo eleitoral dos EUA, no qual o candidato derrotado tentou de tudo para desqualificar a própria derrota.

As pesquisas de opinião indicam a queda de apoio ao atual governo e seu mandatário, com o consequente crescimento daquele que era favorito em 2018. Nada mais natural, diante de uma administração voltada para beneficiar o capital e seus diversos tentáculos, o sistema financeiro, o agronegócio, as multinacionais, o patronato, enfim a burguesia. Obviamente em detrimento do povo brasileiro, vide reforma da Previdência, cassação dos direitos trabalhistas, desemprego, fome, miséria.

Em uma situação normal, esse quadro já seria mais do que suficiente para abalar qualquer governo, mas em meio a pandemia, com mais de meio milhão de mortos, 20 milhões de contaminados, envolvimento de integrantes do governo em denúncias de corrupção justamente na compra de vacinas que poderiam ter evitado centenas de milhares de mortes e tanto sofrimento, está claro que não há mais condições do grupo empresarial-militar que se assomou do governo continuar à sua frente.

Os mais de 120 pedidos de impeachment respondem aos anseios do povo brasileiro, com toda justeza descrente de qualquer mudança positiva por parte de quem já se mostrou incapaz de atender suas necessidades.

Aquele que nunca entendeu de Economia, conforme ele mesmo admitiu por várias vezes, fala em defender o emprego ao se colocar contra o isolamento, a utilização de máscaras, a vacinação em massa, quaisquer medidas necessárias para salvaguardar vidas.

Este mesmo, que nunca pisou em uma faculdade de Medicina, de Farmácia, de Biologia ou de qualquer outra área científica, abertamente defendeu um remédio que não serve para combater o vírus, e agora já tirou outro da manga do paletó. Ele não acredita em Ciência, não se preocupa com a vida do povo brasileiro.

Nesse contexto, os comandantes das Forças Armadas, núcleo central da atual administração pública, se colocam integralmente ao lado do mandatário-mor, ameaçando a democracia duramente conquistada. Passados 36 anos do fim da ditadura empresarial-militar, voltaram ao governo e comprovaram o que é de conhecimento público: não sabem governar, o máximo que conseguem é beneficiar a burguesia e aos altos escalões militares.

A disputa central no atual momento político é, portanto, entre dois projetos: a manutenção das benesses à burguesia e àqueles que as promovem, de um lado; e o povo brasileiro e suas demandas por justiça social, de outro. Não há saída sem que qualquer um dos lados vença, apenas uma falsificação da realidade, algo como esconder a poeira debaixo do tapete, como feito desde o fim do Governo FHC.

Nessa queda de braço, existe um único elemento que pode determinar o vencedor, o maior interessado, o povo brasileiro. A volta às ruas, as manifestações massivas, a organização popular, as denúncias dos lesivos atos governamentais são o caminho para pôr fim a tanto sofrimento.

Cabe destacar que no Peru venceu a eleição o candidato popular, no Chile está sendo elaborada uma nova Constituição com setores populares à frente, e na Bolívia vários golpistas estão sendo presos.

A nossa bandeira não é verde-oliva. O Brasil não aguenta mais esse governo. 

Afonso Costa é jornalista e militante do PCB.

Fonte:Os ventos estão mudando | Monitor Mercantil

domingo, 25 de julho de 2021

Fome e insegurança alimentar no Brasil

 “Ossinhos” da fome: famélicos e insegurança alimentar na pandemia de COVID-19 no Brasil

Por Lucas Gama Lima[1]


Atualmente, um dos temas mais comentados é o crescimento avultado de vítimas da fome durante a pandemia de COVID-19 no Brasil. Certamente, uma das mais graves crises de insegurança alimentar das últimas duas décadas. São vinte milhões de pessoas, aproximadamente, sem ter o que comer e mais da metade da população brasileira sofrendo diferentes níveis de insegurança alimentar[2].

Dois dos episódios mais recentes dessa grave crise vieram à tona na última semana. Imagens de prateleiras de um supermercado, em Cuiabá/MT, amplamente divulgadas nas redes sociais, mostravam a venda de fragmentos de arroz e de bandinha de feijão para consumo humano. São produtos que, anteriormente, eram destinados à ração animal e/ou descartados. Também provenientes da capital mato-grossense, circularam vídeos e imagens de pessoas numa enorme fila, à espera da doação de ossos bovinos por parte de um açougue. A frase do proprietário do estabelecimento, em uma determinada entrevista[3], é bem ilustrativa do que ora descrevemos:

Até o ano passado, vinham em busca da doação cerca de 30 a 40 pessoas. Atualmente, às vezes há mais de 200 pessoas na porta. O fato é que o número aumentou dessa forma devido à fome. Nós doamos alguns ossinhos, o que não é muita coisa, mas fazem muita diferença no dia-a-dia deles.

Não se pode afirmar que o aumento do número de famélicos no Brasil, durante a pandemia de COVID-19, é um evento inesperado ou acidental. Vários foram os estudos e as publicações que advertiram sobre essa possibilidade, a exemplo de artigo escrito por mim, em meados de abril de 2020, sob o título “Se esperarmos o agronegócio, morreremos de fome: população em quarentena quer alimentos e não commodities”[4]. Lamentavelmente, o desenrolar dos acontecimentos confirmou o temível prognóstico.

As determinações essenciais do fenômeno da fome no Brasil permanecem incólumes. As políticas públicas de segurança alimentar e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) foram desmontadas ou fragilizadas, especialmente, entre 2019 e 2020, na primeira metade do mandato presidencial de Bolsonaro. O agronegócio continua ocupando amplas faixas de terra, dotadas de boa disponibilidade hídrica e próximas às grandes concentrações populacionais e às principais rodovias. Além disso, canaliza generosos subsídios estatais para a produção de commodities que integram as cadeias globais de produção de valor, como a circulação de alimentos, energia e celulose.

A despeito das notícias do aumento da fome e do encarecimento de preços dos itens da cesta básica[5] – que têm escandalizado o país desde o segundo semestre de 2020[6] – a exportação de commodities pelos operadores do agronegócio não para de bater recordes na pandemia de COVID-19. De janeiro a abril de 2021 a exportação de soja alcançou algo próximo de 34 milhões de toneladas, quantidade superior à recordista marca de 31,9 milhões de toneladas, registradas no mesmo período de 2020. A exportação de milho, acreditem, registrou alta de 1.854% em abril de 2021, estimulada pela especulação do grão na Bolsa de Chicago[7]. O arroz com casca e o arroz sem casca e parboilizado atingiram a segunda e a terceira maior marca de exportação, respectivamente, dos últimos onze anos[8] (2010-2020).

Os lucros ostentados pelos operadores do agronegócio, no âmbito da pandemia de COVID-19, falam por si só. A JBS, uma das maiores processadoras de proteína animal do mundo e dona da marca Friboi, encerrou o último trimestre de 2020 com lucro líquido de R$ 4 bilhões, o que representa um crescimento de 65% em relação ao mesmo período de 2019[9]. A BRF, controladora das marcas Sadia e Perdigão, anunciou um lucro líquido anual de R$ 1,4 bilhão, elevação de 14,6% em relação ao ano de 2019[10]. A norteamericana BUNGE, trading global, com várias operações no território brasileiro, anunciou um lucro líquido de 551 milhões de dólares, no quarto trimestre de 2020[11], e já celebra o fato de ter mais que triplicado seus ganhos no primeiro trimestre de 2021, quando comparados ao mesmo intervalo de tempo do ano anterior[12].

Em resumo, o agronegócio não interrompeu sua marcha e nem mesmo o desespero de quem aguarda numa fila por um “ossinho” mostrou-se capaz de sensibilizar seus operadores. Por sinal, não nos parece coincidência que os casos de comercialização de fragmentos de arroz e bandinha de feijão, bem como a doação de ossos bovinos tenham ocorrido em Cuiabá. A capital mato-grossense está no coração do agronegócio brasileiro, onde circundam os hectares a perder de vista dos monocultivos agrícolas, as indústrias processadoras de grãos e proteína animal e os depósitos das tradings. É, portanto, território da riqueza e da miséria.

Se o agronegócio prosseguir ditando a dinâmica do uso da terra, o destino da produção agrícola e se apropriando de parcelas importantes do fundo público, não serão poucos os episódios de filas por “ossinhos”, venda de ração animal como alimento humano, etc, etc. E não adianta alavancar o encarceramento de pessoas por furto de comida[13] – como tem ocorrido durante a pandemia de COVID-19 no Brasil – em ações que nos fazem recordar a comovente história de Jean Valjean, personagem do genial Victor Hugo, igualmente condenado por crime famélico na França do século XVIII[14]. Que possamos, logo, encerrar essa barbárie!

[1] Professor do Curso de Geografia do Campus do Sertão da UFAL e membro do Comitê Central do PCB.

[2] http://olheparaafome.com.br/

[3] https://www.pnbonline.com.br/geral/dono-de-aa-ougue-em-cuiaba-que-faz-doaa-a-o-de-ossinhos-diz-que-procura-a-assustadora/78523

[4] Disponível em: http://anpocs.org/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais/2341-boletim-n-27-cientistas-sociais-e-o-coronavirus. Também disponível em: https://pcb.org.br/portal2/25298/se-depender-do-agronegocio-morremos-de-fome/

[5] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/03/11/brasil-e-o-pais-onde-precos-dos-alimentos-subiram-mais-depressa-na-pandemia-diz-estudo.ghtml

[6] https://www.brasildefato.com.br/2020/10/14/alta-dos-alimentos-atinge-populacao-desempregada-nao-tenho-condicoes-de-comprar

[7] https://www.canalrural.com.br/projeto-soja-brasil/soja-recorde-exportacao/

[8] http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home

[9] https://www.poder360.com.br/economia/lucro-da-jbs-atinge-r-4-bilhoes-no-4o-trimestre-de-2020/

[10] https://www.infomoney.com.br/mercados/lucro-da-brf-sobe-308-e-vai-a-r-902-milhoes-no-4o-trimestre-de-2020/

[11] https://valor.globo.com/agronegocios/noticia/2021/02/10/bunge-registrou-lucro-liquido-de-us-551-milhoes-no-4o-trimestre-de-2020.ghtml

[12] https://forbes.com.br/forbes-money/2021/05/bunge-mais-que-triplica-lucro-no-1o-trimetre/

[13] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57477601

[14] HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Martin Claret, 2007.